No Brasil, a presença do vírus HIV em doadores é um dos raros fatores que impedem a doação de órgãos viáveis, apesar de pessoas infectadas pelo vírus poderem receber transplantes. No entanto, o recente caso dos seis pacientes do Rio de Janeiro que contraíram o HIV após receberem transplantes é inédito e não deve ser considerado uma ocorrência comum, alerta a infectologista Lígia Pierrotti, membro do Comitê Científico de Infecção em Transplante e Imunodeprimido da Sociedade Brasileira de Infectologia.
“É inaceitável o que aconteceu, foi um erro grave”, afirma. Apesar do ocorrido, Pierrotti ressalta que o Sistema Único de Saúde (SUS) possui protocolos eficazes para o tratamento de pacientes transplantados que já conviviam com o HIV antes do procedimento. “O Brasil já tem experiência consolidada nesse tipo de tratamento”, explica.
Após um transplante, todos os pacientes devem tomar medicamentos imunossupressores para evitar a rejeição do órgão, e esses medicamentos são compatíveis com o tratamento antirretroviral (coquetel para HIV). “Esses pacientes terão acompanhamento contínuo para garantir o funcionamento adequado do órgão e o controle do HIV com a terapia antirretroviral”, acrescenta Pierrotti.
Os casos de pacientes transplantados que adquirem HIV ao longo da vida também são geridos normalmente com os tratamentos atuais, que evoluíram muito nos últimos anos, trazendo mais conforto e segurança. “Temos diversas opções de drogas antirretrovirais eficazes e seguras para pacientes transplantados”, pontua a médica.
Falhas nos exames de doação de órgãos Além do HIV, a soropositividade para o HTLV (vírus linfotrópico de células T humanas) e a tuberculose ativa são outros fatores impeditivos para doação de órgãos. No caso dos seis pacientes infectados no Rio de Janeiro, a falha ocorreu nos exames que deveriam ter detectado o vírus antes da doação, algo que, segundo Pierrotti, é um erro sem precedentes e grave. Ela reforça que as normas existentes são seguras e que o problema não está nas regras, mas sim no descumprimento delas.
Sistema de Transplantes O Sistema Nacional de Transplantes (SNT) do Brasil é o maior programa público de transplantes do mundo, financiando cerca de 88% dos procedimentos no país. Atualmente, 44.844 pessoas aguardam por transplantes no Brasil, sendo a maior parte (41.445) por um rim. O transplante de órgãos é essencial para salvar vidas e melhorar a qualidade de vida de milhares de pacientes.
Sobre o HIV
O HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana) é amplamente aceito pela comunidade científica como tendo se originado em primatas africanos e se espalhado para humanos por meio de um processo conhecido como zoonose, que ocorre quando um vírus salta de uma espécie animal para humanos. Acredita-se que o HIV tenha surgido a partir do SIV (Vírus da Imunodeficiência Símia), que infecta macacos e chimpanzés.
Como o HIV surgiu:
- Origem no SIV: O HIV é geneticamente muito semelhante ao SIV, o que levou os cientistas a acreditarem que o vírus foi transmitido de chimpanzés para humanos. Esse tipo de transmissão é conhecido como spillover. No caso do HIV, essa transmissão provavelmente ocorreu quando humanos caçavam chimpanzés infectados com o SIV para alimentação, e entraram em contato com o sangue dos animais.
- A Transmissão para Humanos: Acredita-se que a transmissão do SIV para humanos ocorreu no início do século 20, principalmente na região da África Central, particularmente nos territórios que hoje correspondem ao Camarões e à República Democrática do Congo. O vírus sofreu mutações ao entrar em contato com o organismo humano, resultando no HIV-1, o tipo mais comum de HIV no mundo.
- Expansão Global: A urbanização crescente e o aumento das conexões internacionais no século 20, especialmente por meio de rotas comerciais e de transporte, contribuíram para a disseminação do HIV. Inicialmente, ele se espalhou localmente na África, mas o vírus foi identificado nos Estados Unidos no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, quando surgiram os primeiros casos de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) nos homens gays. Isso despertou a atenção global.
- Identificação do HIV: O HIV foi identificado como a causa da AIDS em 1983 por dois grupos de cientistas liderados por Luc Montagnier (Instituto Pasteur, França) e Robert Gallo (Estados Unidos). Esses pesquisadores foram os primeiros a isolar o vírus e demonstrar sua ligação com a síndrome da imunodeficiência.
O HIV tem dois tipos principais:
- HIV-1: O mais comum e responsável pela maior parte dos casos de infecção mundial.
- HIV-2: Encontrado principalmente na África Ocidental, e que se espalha mais lentamente e é menos virulento que o HIV-1.
Desde sua descoberta, o HIV se tornou uma pandemia global, causando milhões de mortes, mas também motivando grandes avanços científicos, como o desenvolvimento de tratamentos antirretrovirais que permitem que pessoas infectadas vivam uma vida mais longa e saudável.